O SAGRADO DIREITO DE NÃO SE AUTOINCRIMINAR

Em julgamento recente do Tema 1.060, por maioria dos votos, a 3ª Seção do Egrégio Superior Tribunal de Justiça definiu, sob o rito dos recursos repetitivos, que é crime de desobediência ignorar a ordem de parada de veículo emitida por policial no exercício de atividade ostensiva de segurança pública.

Em uma breve síntese, o caso analisado se refere a um agente que, mediante grave ameaça, subtraiu para si o veículo Toyota/Etios e, na sequência, empreendeu fuga do local.

No dia seguinte, após ter abastecido e se evadido do posto de combustível sem o efetivo pagamento, a autoridade policial tentou abordar o automóvel — que contava com registro de furto — contudo, o agente, desobedecendo a ordem de parada, tentou fugir, perdendo o controle da direção e tombando o veículo.

Em primeira instância, o agente foi condenado à pena privativa de liberdade de quatro anos de reclusão e 15 dias e detenção, a ser cumprida no regime aberto, por infração dos artigos 157 (crime de roubo) e 330 (crime de desobediência), ambos do CP. Irresignado, apelou.

Por unanimidade, o Tribunal de Santa Catarina desproveu o apelo defensivo. Contudo, no que tange à prática do crime de desobediência, de ofício — eis que a defesa não se insurgiu contra a referida condenação — absolveu o agente, haja vista que "a conduta de desobedecer ordem emanada de autoridade pública não configura crime quando se dá em virtude da preservação da própria liberdade do agente, hipótese dos autos, pois tudo leva a crer que o acusado assim procedeu, porque estava conduzindo veículo anteriormente roubado, o qual havia sido abastecido, sem o efetivo pagamento, momentos antes da abordagem" (sic).

Ato seguinte, o Ministério Público de Santa Catarina interpôs Recurso Especial, apontando a violação ao artigo 330 do Código Penal sob o argumento de que a conduta do agente deveria ter sido considerada típica. O apelo nobre foi admitido pelo Tribunal de origem e o mencionado recurso foi qualificado como representativo da controvérsia, candidato à afetação. Por sua vez, a Terceira Seção, por unanimidade, afetou o processo sob o rito dos recursos repetitivos.

Ao apreciar a questão, a Terceira Seção, por maioria, deu provimento ao Recurso Especial ministerial, restando a tese fixada da seguinte maneira: "a desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes públicos em contexto de policiamento ostensivo, para a prevenção e repressão de crimes, constitui conduta penalmente típica, prevista no artigo 330 do Código Penal Brasileiro".

Por meio do referido julgamento, o direito de não autoincriminação e a consequência de não produzir prova contra si mesmo — expressamente garantidos no País em 1988, com a incorporação à Constituição Federal, muito embora já pudesse encontrá-los sutilmente em textos anteriores — foram relativizados e indevidamente mitigados.

Para muitos [se não a maioria], o motivo da fuga é evidente. Claro, pois, ninguém pode ser obrigado a permanecer no local do crime para sofrer as consequências penais do ato que possivelmente provocou, ante a afronta direta ao nemo tenetur se detegere.

No entanto, o julgamento em análise seguiu a linha da decisão do Egrégio STF na Ação Declaratória de Constitucionalidade 35 — que será abordada mais à frente — e flagrantemente atropelou a manifesta garantia constitucional da não autoincriminação no seu mais puro sentido: "Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo". Senão vejamos.

Consagrado pela Constituição Federal de 88, em seu artigo 5°, inciso LXIII, o direito à não autoincriminação foi previamente estabelecido no artigo 8, 2, "g", na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Porém, antes mesmo do ano de 1969, já havia sido reafirmado em julgamentos realizados nos Estados Unidos, principalmente no memorável caso Miranda versus Arizona (384 US 436, 1966), ocasião em que se entendeu pela necessária comunicação ao preso (acusado ou mesmo qualquer um que possa, potencialmente, se incriminar, ainda que em condição de testemunha) a respeito da não produção de prova contra si mesmo.

O princípio nemo tenetur se detegere envolve diversas questões extremamente relevantes como: permanecer calado; não ser compelido a confessar o cometimento de uma infração penal; inexigibilidade de dizer a verdade; não produzir qualquer tipo de prova que possa lhe incriminar; e, o mais importante para o caso ora debatido: não adotar conduta que possa lhe causar prejuízo.

Muito embora a garantia seja muito clara quanto ao direito em sua essência, o STJ, no julgamento referido, diferenciou, para fins de incidência do princípio da não incriminação, a conduta ativa da passiva do acusado e decidiu que apenas a última autoriza sua aplicação.

E o fez de forma equivocada, a nosso sentir, porque, no final das contas, a norma tuteladora do sagrado direito de se autodefender não dispõe sobre eventuais formas de exercê-lo, limitando sua efetividade apenas a atos omissivos.

No meio doutrinário, muito se discute acerca da compreensão e alcance da não autoincriminação, inexistindo consenso sobre o tema até os dias atuais. Boa parte disso diz respeito à grande controvérsia sobre a possibilidade (ou não) de limitar o direito/garantia da não autoincriminação. Há quem entenda que a garantia é absoluta, o que possibilita ao agente a isenção de colaborar ou participar da colheita de prova. Por outro lado, uma parcela doutrinária compreende que o direito não é absoluto e, portanto, a não autoincriminação pode sofrer algum tipo de limitação em seu alcance e aplicação.

Essa divergência refletiu diretamente no julgamento realizado pelo Egrégio STJ.

Prolator do voto vencido, o ministro Olindo Menezes (desembargador convocado do TRF da 1ª Região) entendeu que apenas haveria a ocorrência do crime de desobediência quando a ordem legal partisse de um servidor público, de forma documentada e emanada de um processo.

Embora não tenha debruçado propriamente sobre o direito a não autoincriminação — assim como o Tribunal de Santa Catarina acertadamente fez —, é de se aplaudir as relevantíssimas pontuações trazidas pelo ministro Olindo. Para ele, a questão é anterior à ora trazida. Sob a sua ótica, jamais haveria de ser chamado o Direito Penal (ultima ratio) para uma situação como a do caso em comento, ainda mais diante da expressa previsão de sanção administrativa no Código de Trânsito Brasileiro (artigo 195 do Diploma legal).

De qualquer forma, como muito bem ressaltado pelo Tribunal de origem, "a conduta de desobedecer ordem emanada de autoridade pública não configura crime quando se dá em virtude da preservação da própria liberdade do agente".

Afinal, o interesse público, na persecução penal — salvo raríssimas exceções (o que não é o caso) —, não pode se sobrepor às cláusulas pétreas constitucionais, veiculadoras dos direitos e garantias individuais.

Pouco importa, nesta ordem de ideias, seja a conduta do réu ativa ou passiva quanto à autoincriminação. O que não pode ocorrer é que ele seja compelido a produzir prova em seu desfavor.

Nereu José Giancomolli, jurista adepto da corrente que possibilita ao agente à recusa na colaboração, preleciona que: "Ninguém poderá, legitimamente, ser compelido a produzir provas para incriminar-se, para autoincriminar-se, na medida em que há de ser respeitada a vontade em permanecer em silêncio, de não agir, de não colaborar. (...) A 'colaboração' do suspeito ou do acusado, quando não voluntária, fere o estado de inocência e a ampla defesa. Portanto, não importa ser essa 'cooperação' ativa ou passiva, declaratória ou comportamental, nem o grau ou nível de invasividade. Abrange, portanto, uma complexidade de comportamentos, condutas, circunstâncias autoincriminatórias, ou seja, tudo o que pode ser utilizado contra o sujeito, não só a exteriorização do pensamento mediante declaração".

Trazendo esses ensinamentos à hipótese em exame, com o devido respeito aos que entendem de maneira diversa, obrigar o agente que acabou de cometer um crime a parar na abordagem policial "ostensiva", sob pena de imputação de infração penal, fere de morte o direito fundamental de não colaborar com a atividade estatal.

A garantia em discussão é legítima e se refere exclusivamente à possibilidade de se defender, agindo ou não agindo, sendo a abordagem policial ostensiva ou de rotina, preservando-se, ao final, o estado de inocência do agente e sua liberdade!

Não por outro motivo, em discussão similar envolvendo à não autoincriminação, o Colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça Bandeirante declarou a inconstitucionalidade do artigo 305 do CTB, que tipifica a conduta de deixar o local do acidente para fugir da responsabilidade penal ou civil.

Guilherme de Souza Nucci [1], do alto da sua autoridade, leciona que o referido artigo contraria frontalmente o princípio do nemo tenetur se detegere:

"Afastar-se (retirar-se; ir embora) do local do acidente de trânsito, com o fim de não ser penal ou civilmente responsabilizado. Trata-se do delito de fuga à responsabilidade, que, em nosso entendimento, é inconstitucional. Contraria, frontalmente, o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo nemo tenetur se detegere (...). Inexiste razão plausível para obrigar alguém a se auto acusar, permanecendo no lugar do crime, para sofrer as consequências penais e civis do que provocou. Qualquer agente criminoso pode fugir à responsabilidade, exceto o autor de delito de trânsito. Logo, cremos inaplicável o artigo 305 da Lei9.503/97.3".

A questão, no entanto, está longe de ser pacificada. Em matéria de repercussão geral no RE n° 971.959, a Suprema Corte apreciou a questão e definiu que é constitucional o tipo penal previsto no artigo 305 do CTB, restando o Tema 907 ementado da seguinte maneira: "a regra que prevê o crime do artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97) é constitucional, posto não infirmar o princípio da não incriminação, garantido o direito ao silêncio e ressalvadas as hipóteses de exclusão da tipicidade e da antijuricidade".

Recentemente, a matéria foi rediscutida na Suprema Corte, ocasião em que se reafirmou a jurisprudência no tocante à constitucionalidade do artigo 305 do CTB e, por maioria dos votos — restando vencidos os Ministros Marco Aurélio (relator), Cármen Lúcia e Celso de Mello que, de forma correta, entendiam que o dispositivo viola a garantia da não autoincriminação — julgaram procedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade 35, mantendo-se o entendimento anterior.

No entanto, com o devido respeito tributado à douta maioria, entendemos, sem espaço para dúvidas, que o artigo 305 do CTB está em aberto descompasso com a Constituição de 1988, assim como no caso da fuga da abordagem policial após o cometimento de crime. Não se pode, com o perdão pela insistência, obrigar alguém a permanecer no lugar do crime ou a parar em abordagem policial logo após sua prática para sofrer as consequências penais e civis do ato que possivelmente provocou sem que isso implique em violação à autoincriminação.

Por esse mesmo motivo, não há como concordar que, no presente caso, a falta de cooperação do agente do delito desague na prática do crime de desobediência. É o que leciona o destacado jurista Aury Lopes [2]:

"Por elementar, sendo a recusa um direito, obviamente não pode causar prejuízos ao imputado e muito menos ser considerado delito de desobediência."

 Ademais, embora se reconheça que, em tese, não há direitos fundamentais ilimitados, um princípio basilar tão importante como a não autoincriminação não pode ser mitigado para restar reconhecida apenas as hipóteses de atos omissivos.

Não parar em vistoria policial, assim como não se entregar ou esperar no local logo após a prática de qualquer crime é ato de autodefesa e não pode, nem em tese, ser tipificado como crime de desobediência.

Em um Estado que se diz democrático de Direito, optante do sistema processual acusatório, espera-se que as garantias fundamentais sejam reafirmadas diariamente e, portanto, se ninguém é obrigado a acusar a si próprio, não há razoabilidade para processar o crime de desobediência pelo simples fato de não ter sido acatado uma ordem de abordagem policial que, ao final, poderia contribuir para a descoberta de prova contra ele mesmo.

Em suma e para concluir: o agente não pode ser prejudicado em sua esfera jurídica, quando o elemento volitivo da conduta visa a preservação da própria liberdade. Sendo assim, a verdadeira solução para o caso em discussão seria a punição unicamente no direito administrativo, como perfeitamente colocado no voto vencido prolatado pelo ministro Olindo Menezes.

Fontes
CHOUKR, Fauzi Hassan. Iniciação ao processo penal. 2. ed. — Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.

GIANCOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3. ed. rev., atual. e ampl. — São Paulo: Atlas, 2016.

LAVORENTI, Wilson; BALDAN, Edson Luis; BONINI, Paulo Rogério. Leis penais especiais anotadas. 13. ed. ampl. e atual. — CAMPINAS, SP: Millenium Editora, 2016.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual penal. 17. ed. — São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

QUEIROZ, Paulo. Direito Processual Penal. Introdução. 2. ed. rev. ampl. e atual. — Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Processo Penal e Execução Penal. 16 ed. reestrut., revis. e atual. — Salvador: Ed. JusPodivm, 2021.

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Comentadas. 5ª ed. rev., ampl., atual. São Paulo. Revista dos Tribunais 2010. p. 1249/1250.

[2] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual penal. 17. ed. — São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 119.

 

https://www.conjur.com.br/2022-ago-08/opiniao-sagrado-direito-nao-autoincriminar